sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Pequena Antologia Poética (bem incompleta) do ABC

Olá a todos. Cá estamos para mais uma postagem. Desta vez trago poesia. Pensei muito em que falar sobre a poesia que conheci em ATM. Escolha um (ou mais de um) e simplesmente leia. Sem referência alguma, exceto o nome dos autores, preferi que os poemas falassem por si mesmos: 

Pensando em poesia 
palavras ao vento
caíram das folhas 
em que eu escrevo 

SETEMBRO
Jurema Barreto de Souza
Só crio pássaros em árvores
Reconheço um sabiá
que me acorda acompanhado
por um coro de pardais,
privilegio urbano
de quem insiste em
deixar crescer sementes
das quais ignora o nome

As raízes quebram o asfalto,
o tédio da calçadas
lajotas simétricas
verdes, cinzas,
desenhadas pelo tempo.
Amanhece sempre
através dos séculos,
mas ainda há pássaros
em setembro

SERRA QUE ENCERRA. . .
Toninho Orlando 
A chuva na serra
encerra um momento
de cerrar um olhar
que encerra um tormento
de viver encerrado
dentro do eu
que tem muitos nós
a cada momento
em que serra o silêncio
o grande tumulto
de viver em si mesmo
cerrando os olhos
para acordar
quando a chuva na serra
parar de chorar
encerrando um sorriso
esperando um olhar
que traga esperança
de não encerrar
o branco da paz
o verde da serra
que custa a brotar
debaixo das serras
tão bem afiadas
querendo serrar
o pinho de cordas
a luz do luar
que ficou num só canto
que ficou num cantar

AGUENTA GABRIELA
Augusto Reis 
Levanta de Madrugada
Sai gemendo pra rua
Parece u’a condenada
Sem ter feito falcatrua
Ela não sabe no entando,
O belo exemplo que dá,
Pois a grandeza que eu canto
É junto dela que está

Agüenta Gabriela!
Porque isto que carregas
Não é cravo, nem canela,
Mas um meio muito honesto
De forrar tua panela !
É um exemplo e um protesto,
Contra todas as mazelas

(...)

Lá vai a carroça cheia,
Com restos de papelão,
Mas... “Papelão” volta e meia
Faz o governo sem peia
Que anda na contra-mão,
Constrói castelos na areia
Pra se ocultar nas ameias,
Deixando o povo na mão!

GUERNICA REVISITADA 
Iracema M. Régis (contemplando os murais de Emeric Marcier) 
Anêmicos
Tons pastéis
Marrons
Brotam os perfis
(esquálidos)
escuras
fendas abertas
(bocas)
 - um grito que não se calou

Guernica
Chaga exposta
Sem cura
Nem retoque
‘Senhor Deus dos desgraçados!...
Dizei-me vós, Senhor Deus!...
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus!...
Guernica
Alegoria
Simbologia / expressionismo
Barroco-surreal?...
Nem Deus
Só o Diabo
Na tela sem sol

ERA TECNOLÓGICA
Acróstica
Trabalho esgotado
Amor virtual...lotado
Competição insaciável, produção
"Tecnoloesia", fundindo poesia
Inusitada, comparada e deletada

POEMA CACHAÇA
Castelo Hanssen 
Eu queria fazer uma poesia
que fosse cristalina como o dia
para ser consumida como o pão

Uma poesia assim:
que trouxesse beleza em cada rima,
para ser cantada no trabalho,
para ser batucada na marmita,
para ser comentada nas esquinas.

Uma poesia assim:
Comum e popular como a cachaça
que se bebe barato, que é de graça,
que é do pobre, do rico, do sem nome.
Uma poesia que todos entendessem
como todos entendem a palavra amor
ou a palavra fome.


VADIAGEM
Zhô Bertholini
meus passos, sempre meus passos,
eis-me a sós em solo diário
mapeando tardes inteiras e urbanas
automotivas
sinalizadas
enfileiradas
congestionadas
e meu coração que pulsa
na mais legítima contramão

ruas intercaladas de pressas e surpresas
tudo gesto, ação e dispersão
em trajetos que somos
reais, humanos ou mera colisão

A FACE OCULTA DO MORRO 
Macário Ohana Vangélis 
O que mata o morro é não saber sua história,
É não guardar suas memórias,
A riqueza da cidade vem do morro,
São pretos, pedros, pedreiros
São costureiras e enfermeiras
São operários e batuqueiros,
São putas e madames mandando o pé
Na bunda dos canalhas

É São Jorge e Jesus Cristo tomando porres,
Estendendo as mãos a malandros e otários
Aos sobreviventes de salários

O morro é um porco gordo
Fatiado e devorado por estômagos delicados
No banquete das negociatas

O morro é uma velha babilônia resistindo,
É estúpida idéia ariana,
É o caos antropofágico,
Caldeirão de mouros, nordestinos e afro-europeus
Ou que o diabo ou deus, o sacaneando, lhe mandou

O morro é América católica estoicista
Negando-se todos os dias

Que engenheiros.
Que carpinteiros,
Senão os intuitivos do morro,
Construiriam tais palácios, palafitas, barracos (?).

Aonde tal solidariedade e festas dionisíacas?...
... O morro pede socorro? ...
AH!...nasceste um narciso em teu umbigo.

PAIXÃO
Claudio Feldman
Como alguém que abandona os sapatos
Para andar sobre brasas
Me entreguei à paixão com júbilo feroz
E o alento da amada foi o meu:
Nossas peles gêmeas
Venceram o opaco silêncio do mundo

Hoje, que as nossas veias se apartaram,
Já não somos os mesmos: mas o eco
Do nosso amor alumbrado de carícias
Ainda estremece as ruas solitárias
Com a secreta brisa de bailantes primaveras

TINHA UM CANGAMBÁ, UMA PEDRA E UM CACTO REPELENTE NO MEIO DO MEU CAMINHO (Para José Alcides Pinto)
Aristides Theodoro 
Quando levantei-me da cama,
numa manhã de novembro de 1937,
molhado pela gosma fétida da placenta,
vi logo um cangambá no meio do meu caminho.

Esse bicho nojento
secou o leite de minha mãe,
comeu minha papa rala,
tornou a minha sopa insossa,
cercou o meu caminho.

No início tinha uma enorma pedra
e um cangambá no meu caminho
Drummond, um iniciante,
que já era uma sombra imensa,
quis roubar o meu primeiro verso.

Queria passar. Mas Como?
Se no meio do meu caminho
tinha uma pedra e esse cangambá nojento
sempre a me olhar?...

“Tinha um pedra”
“tinha uma pedra”
“tinha uma pedra”
“tinha uma pedra”
ali, no centro do meu caminho,
e um cangambá nojento
sempre a me olhar

Por que deus e o DIABO,
Que nunca foram meus amigos,
permitiram que um cangambá nojento,
uma pedra grande e mais um cacto repelente
ficassem ali plantados
no centro do meu caminho?

Toca Filosófica, 23/09/2002

ESPELHO PROVISÓRIO
Dalila Teles Veras
"são espelhos que me revelam
Sem eles eu talvez não soubesse de mim"
Cecília Meireles
Minha imagem nas vitrinas da cidade
(estrangeira, sempre)
ausculto:
os becos que dormitam
os cruzamentos infernais
os silêncios súbitos
a luta surda
a grita explícita
por um lugar à fresca
por um sonho de ribalta
pelo simples sobreviver

Anoto:
o que não está à frente
o que não brilha
o que não grita
o que não é outdoor
a camada abaixo da camada
o que não é mais 
o que passa a ser 
palimpseto revelador

Serei eu essa imagem trêmula
nativa entre estrangeiros?
Será minha esta opaca imagem
que o lago turvo da falsa Praça
não permite distinguir


Vou talvez somar alguns poemas a estes e na outra semana falo um pouco dos movimentos literários que tive contato. Quem tiver alguma curiosidade ou interesse eu posso falar mais sobre os poetas que eu citei aqui. Abraços!

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Cinema no ABC

Saudações !


Em meu livro Águas, Trilhos e Manacás - as cores da memória, procurei falar sobre modalidades artísticas tão diversas quanto artes plásticas, música e cinema. Nas próximas postagens farei considerações a respeito de cada uma delas não me detendo necessariamente no conteúdo do livro. Por isso contribua, comente com seu conhecimento, dê sua opinião. No facebook tenho colocado material extra, fotos, links etc. Confira aqui.


Hoje inauguro essas "sessões temáticas" falando sobre produção cinematográfica na região. Achei mais interessante esse recorte temático. Atenção para os links "disfarçados" no meio do texto se você quiser se aprofundar nos assuntos.

A produção cinematográfica do ABC vai do cinema marginal aos grandes meios de comunicação, do amador ao profissional, do documentário ao drama. A primeira manifestação significativa que destaco é a Cia Cinematográfica Vera Cruz em São Bernardo do Campo. A recém emancipada cidade recebe o boom industrial especialmente automobilístico na década de 1940. Nessa onda,  Cicillio Matarazzo e o produtor Franco Zampari decidiram investir no cinema e criar em 1949 a Vera Cruz, um dos mais importantes estúdios que o país já teve, produzindo filmes como O Cangaceiro, Sinhá Moça e Mazzaroppi, que se tornou um ícone do cinema brasileiro. Alguns dos filmes produzidos pela Vera Cruz foram recuperados e estão disponíveis na íntegra aqui no site da Elo Company.

Durante as pesquisas para ATM, tive a oportunidade de conversar com Sonia Gerber, em Mauá, sobre a história de seu pai, Hans Gerber, que, junto com seu irmão Wolfgang, criou o primeiro estúdio fotográfico da cidade. Com os recursos que tinham filmaram em 35 mm um documentário mudo de aproximadamente 45 minutos com várias cenas (algumas bem curiosas e engraçadas) da cidade de Mauá nos anos 50. Crianças brincando no Tanque da Paulista, cheias causadas pela chuva, ônibus, carros, chaminés fumegantes das fábricas de porcelana da cidade etc. Fiquei surpreso quando apareceu o antigo prédio da Estação Mauá, muito parecido com os atuais edifícios das estações de Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (agora tombados pelo CONDEPHAAT). O Sr. Hans tinha o desejo de publicar Mauá em Marcha, seu documentário, com sua própria narração, mas faleceu antes, infelizmente. (Veja mais aqui) Até onde se sabe Mauá em Marcha reúne as primeiras imagens em movimento da cidade de Mauá. Sonia e seus filhos guardam ainda com muito carinho a memória do avô, importante para todo a região.

MAUÁ EM MARCHA - cena que mostra o antigo edifício (já inexistente) da Estação Mauá

O Cinema Novo também rendeu seus frutos pelo ABC. Aron Feldman, chegando em 1958 em Santo André começa a propor novos focos sobre a sociedade brasileira. No curta metragem Casqueiro,  por exemplo, fala sobre crianças vendedoras de carangueijos na beira da estrada em Cubatão. Já o média A Febre Nossa de Cada dia sobre as angústias da classe média paulista. O confronto com a censura viria em O Mundo de Anônimo Jr protagonizado por seu filho, o escritor Claudio Feldman, fazendo uma sátira da repressão dos militares. O filme foi vetado. O acervo de Aron Feldman se encontra na posse da Cinemateca Brasileira, na cidade de São Paulo. Uma boa parte de sua memória é mantida também por Claudio, que depois de anos na literatura, recentemente retornou ao cinema como roteirista. 

Aron e Claudio Feldman nas filmagens de A Febre Nossa de Cada Dia. Foto do acervo pessoal de Claudio Feldman
A pequena Rio Grande da Serra não ficou pra trás. Na década de 1970 um ousado grupo de alunos procurou o fotógrafo Mingo (que na época se aventurava a filmar com um 8mm) para dirigir um trabalho de escola bem ambicioso: um filme sobre juventude, drogas e violência. Mingo dirige então os alunos em O Caminho dos Viciados os ensinando técnicas de atuação, edição, sonoplastia, trilha sonora (com muito rock 'n roll) etc. Em breve postarei aqui o vídeo. Em 2006, "sem querer" a Solvay em parceria com o Estúdio Brasileiro (ambos parceiros também em ATM) elevou a outro patamar a experiência de O Caminho dos Viciados em Rio Grande da Serra. A partir de um concurso de redações com alunos de escolas públicas de Rio Grande e Paranapiacaba o projeto Curta Química e Natureza (CQN) lança a cada ano um DVD com curtas-metragens produzidos pelos alunos assessorados por uma equipe de profissionais. Os jovens aprendizes passam por todas as etapas e especialidades da produção cinematográfica desde o roteiro até a edição, passando também pela dramaturgia e direção. Alguns curtas forma premiados em importantes festivais do país. 

Em Ribeirão Pires, durante a década de 2000 Emerson Muzeli, cineasta de Ribeirão Pires se especializa em direção de cinema e tv. Sempre fazendo questão de manter seu estúdio em Ribeirão Pires, em 2010 conseguiu a atenção de toda a região quando tomou para si a tarefa de fazer um festival para reunir, no ABC, o que há de melhor no cinema brasileiro, especialmente na região. O Festival Um Novo Olhar, abriu espaço para vários cineastas locais trocarem experiências e apresentarem seus trabalhos (especialmente na sua mostra competitiva de curtas) bem como discutir possibilidades. Esse é o caso dos cursos oferecidos no festival, por exemplo uma oficina que explorou o uso de instrumentos  do cotidiano como celulares, cameras digitais, Ipod's etc para se fazer filmes. Esta oficina foi coordenada por Alex Moletta, outro importante cineasta andreense (formado pela Escola Livre de Cinema de Santo André, vale ressaltar) cuja obra inclui filmes como "O Pau da Missa" (assista aqui), um documentário sobre Paranapiacaba que capta com grande sensibilidade e precisão aspectos do imaginário e do cotidiano dos moradores da vila. Veja a reportagem do programa zoom sobre o Festival:





Há cineastas engajados (ou não) espalhados por aí: Alex Moletta também tem um estúdio em Santo André. Emerson Muzeli fez o premiado Café Amargo filmado em Paranapiacaba. Éderson de Oliveira, em Mauá produziu alguns documentários sobre a cidade a partir de uma oficina de cinema que sonha em trazer de volta para o município. Mingo guarda não só suas antigas filmagens "de brincadeira" com a 8mm e a Super 8 como também o registro que fez da restauração da Capela de Santa Cruz em Rio Grande da Serra (suas fotos de quando a capela estava em pé serviram de estudo para o restauro por serem a única documentação disponível). 

O Caminho dos Viciados - Cena do filme
 Em São Bernardo, o complexo dos Estúdios Vera Cruz está em vias de tombamento estadual e federal. A prefeitura de São Bernardo do Campo tem discutido diversas propostas de reutilização do espaço para produção de cinema da região e já tem realizado algumas delas (sei de um projeto interessante mas preciso de mais informações antes de contar aqui). Outros acervos ajudam a contar a história do cinema no ABC como é o caso do artista plástico Pierino Massenzi, cenógrafo das produções de Mazzaropi.

Enfim, essa pequena amostra indica um pouco do cinema do ABC e seu potencial... um pouco. Antes de reclamarmos de falta de incentivo etc, que tal procurarmos conferir o que temos dispónível? 


Abraços